quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Confieso que he vivido


Confieso que he vivido, 1974, Plaza & Janés Editores, S.A., é uma magnífica crónica dos tempos vividos por esse enorme poeta, talvez algo esquecido em Portugal, de nome, aliás pseudónimo, Pablo Neruda. É um testemunho na primeira pessoa do retrato da sua época, dos seus amigos, das suas aventuras e desventuras, da sua memorável passagem por este mundo. No primeiro capítulo em que dá particular atenção ao bosque chileno, e é preciso ir ao Chile para se perceber a tremenda força e beleza da natureza naquele país, lança-nos logo um parágrafo premonitório daquilo que nos espera ao longo das mais de 450 páginas deste surpreendente e bem humorado livro

De aquellas tierras, de aquel barro, de aquel silencio, he salido yo a andar, a cantar por el mundo.  

O escritor começa por nos contar em pormenor a sua infância e adolescência, o seu primeiro contacto com os livros, aliás pela mão da directora do liceu feminino de Temuco, a também laureada com o Nobel da Literatura Gabriela Mistral, a ida para Santiago em 1921 para estudar na universidade, onde começa a sua consciencialização cívica, política, revolucionária. Depois dá-nos a conhecer o seu percurso de vida já adulta, a amizade com personalidades marcantes do século XX, Alberto Rojas Giménez, García Lorca, Rafael Alberti, Diego Rivera, Aragon, Jorge Amado, Paul Éluard, etc., etc., o seu primeiro livro, Crepusculario, 1923, os seus amores, as suas viagens, o seu trabalho diplomático, político enquanto Senador, o partido comunista, a fuga para o exílio e posterior retorno, o prémio Nobel, o golpe de estado fascista de 1973, que culmina com a morte de Allende, enfim, toda uma vivência cheia de peripécias e aventuras. O divertido episódio da sua nomeação como cônsul em Rangoon, Mianmar, ou Birmânia, e da atribulada subsequente viagem para o Oriente, em 1927, desde a sua entrada na Europa por Lisboa, depois Madrid, Paris, Xangai, Tóquio, Singapura, revelam bem o carácter aventureiro de Neruda e encantam o leitor com pormenores deliciosos. Em Isla Negra, litoral oeste do Chile, a sul de Valparaíso, começa a escrever a sua obra magistral Canto General, um “poema central que agrupará as incidências históricas, as condições geográficas, a vida e as lutas dos nossos povos”. Em Confieso que he vivido, autobiografia quase romanceada, como aliás compete a um poeta da sua estatura, Neruda presenteia-nos com uma escrita fluida e minuciosa, mostra-nos o seu mundo, que foi enorme, através do olhar perspicaz e inteligente de um grande contador de histórias, abre-nos o seu pensamento político e humanista que fazem parte da sua lenda; 

Me toco padecer e luchar, amar y cantar; me tocaron en el reparto del mundo, el triunfo y la derrota, probé el gusto del pan y el de la sangre. ¿Qué más quiere un poeta? Y todas las alternativas, desde el llanto hasta los besos, desde la soledad hasta el pueblo, perviven en mi poesia, actúan en ella, porque he vivido para mí poesía, y mi poesia há sustentado mis luchas.

Embora fosse um homem de muitos mundos, Pablo Neruda nunca esqueceu as suas raízes, as lutas da sua pátria, os seus conterrâneos, o seu pueblo. Era alguém profundamente enraizado na cultura sul-americana, hispânica, chilena. Um dos grandes escritores do século passado. Sei que há pelo menos uma tradução antiga deste livro das Publicações Europa-América. Leiam-no pois ninguém se sentirá defraudado. Obrigatório.

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