quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Oaxaca e Mont Albán

Em 2006 a cidade de Oaxaca foi palco de um grave conflito que começou por ser um simples protesto do sindicato dos professores contra o governador do estado mas que acabou da pior maneira. O que então parecia uma manifestação contestatária relativamente pacífica descambou, vários meses depois, num movimento de desobediência civil que levou ao cerco da cidade pelo exército mexicano e que, mais tarde, terminou com uma intervenção repressiva e sangrenta. Aquela tão pouco conhecida cidade aparecia então quase diariamente nos media internacionais. Tempos esses de conflito que, pelo menos aparentemente, estão já sanados.


A cidade de Oaxaca, património da humanidade pela UNESCO, situada na zona meridional do México, a pouco menos de 500km da capital, uma monótona viagem de seis horas e meia de autocarro, é um local encantador de visita obrigatória para quem vai conhecer aquele país. Uma pérola meio escondida na imensidão da América Central.



Fundada em terras astecas pelos espanhóis em 1529 é hoje em dia uma lindíssima e animada cidade de arquitectura colonial especialmente bem conservada. A enorme praça do Zócalo, por vezes palco de interessantes concertos gratuitos, ladeada por arcadas de pedra que albergam agitados cafés, restaurantes e lojas variadas, embelezada por frondosa vegetação e pela animação contínua proveniente de uma bem diversificada feira, é o centro nevrálgico desta cidade. É com prazer que se toma aí ao fim da tarde um copo de mescal, ou uma Corona, enquanto se aprecia toda aquela alegre azáfama e se trocam impressões com os simpáticos e sempre prestáveis autóctones. 



Mas a cidade tem muitos mais pontos de interesse para o turista para além dessa grandiosa praça. O palácio do Governo, a vizinha praça da Alameda, a catedral de Oaxaca, a igreja de Santo Domingo, a basílica da Nuestra Señora de la Soledad, o teatro Macedonio Alcalá, as movimentadas ruas com as cores berrantes dos abundantes palacetes senhoriais, muitos dos quais albergam no seu interior surpreendentes jardins, o Jardín Etnobotánico, etc., etc., e, visita fundamental, o museu das Culturas de Oaxaca, excelente quer no conteúdo quer na forma das exposições, instalado no antigo convento dominicano de Santo Domingo.



O mais surpreendente é que a cidade não esgota os seus abundantes recursos arquitectónicos num rico passado colonial pois a arquitectura de interiores contemporânea é verdadeiramente surpreendente, a que talvez não seja estranha a faculdade de arquitectura, sedeada numa aristocrática casa de cor vermelha, da Universidade Autónoma Benito Juárez (ilustre personagem local, foi governador do estado e, mais tarde, em 1861, presidente da república). O encanto desta urbe maximiza-se nos muitos espaços de convívio preguiçoso em que o tempo parece absolutamente paralisado e o ar quente e seco nos retiram quaisquer veleidades de stressadas iniciativas.

 

Mas uma viagem a Oaxaca não se esgota na cidade propriamente dita. Através de transportes públicos uma ida a Mont Albán demora, aproximadamente, 20 minutos. Antiga capital zapoteca deverá ter sido originalmente erigida duzentos anos antes de Cristo. Quinhentos anos mais tarde a população desta cidade deveria rondar os vinte e cinco mil habitantes. Pensa-se que entre os séculos VIII e X terá sido definitivamente abandonada. Em tempos foi o centro de uma civilização bem organizada com edifícios e templos grandiosos cheios de cor, cuja arquitectura sofreu decerto influências de Teotihuacán, magnífico sítio arqueológico pré-colombiano perto da cidade do México.



Situado no cume de uma montanha o espaço goza de uma tranquilidade surpreendente, tanto mais que não é dos sítios mais visitados pelas hordas de turistas que sempre poluem o ambiente destes locais. Assim, pode-se deambular por entre as ruínas e apreciar as grandes praças, os palácios, as pirâmides, os túmulos e os campos de jogos com total serenidade. Tempo para reflectir sobre aquelas civilizações há muito extintas e sobre o riquíssimo legado cultural que, felizmente, nos deixaram.



Mas não se pode "abandonar" Oaxaca sem antes se visitar o famoso cipreste da igreja de El Tule, que fica a dez quilómetros de distância da cidade. A vetusta e sagrada árvore tem entre 1400 a 3000 anos de idade e um tronco com, aproximadamente, 12 metros de diâmetro! É um local de peregrinação absolutamente obrigatório. 



fotos: migalha, lda

terça-feira, 22 de novembro de 2011

The Corrections


The Corrections, de Jonathan Frazen, passou despercebido entre nós até surgir em Portugal o seu mais recente livro, Liberdade (escrito quase uma década depois do anterior). O escritor, que gosta de abordar detalhada e ironicamente as personagens das suas obras, tem a habilidade de nos fixar nas suas narrativas utilizando uma técnica muito comum em best sellers que consiste em interromper bruscamente num determinado momento a acção e em só a retomar vários capítulos mais tarde. É óbvio que isso em nada diminui a consistência da sua escrita mas esta apetência para agradar “quer a um público literato quer popular” tem-lhe valido algumas críticas menos agradáveis. No entanto, utilizando esse “estratagema” e conseguindo uma interacção perfeita entre os espaços da acção e os diversos tempos da narrativa, e é com grande mestria e eficácia que ele interliga o presente e o passado, Jonathan Frazen, um escritor bastante mediático nos Estados Unidos, faz com que o ávido leitor queira sempre mais e mais até às páginas finais! Em The Corrections o autor aborda, com humor subtil, a temática de uma algo conflituosa família americana, conservadora, do midwest, em finais dos noventa do século passado, os Lamberts. Albert, o patriarca, engenheiro ferroviário, inventor, sofre de Parkinson num estado avançado pelo que tem já grandes dificuldades de mobilidade, assim como algum grau de demência, enquanto Enid, sua esposa, que suporta o enorme desgaste da vida conjugal devido à terrível doença do primeiro, tudo faz para conseguir reunir em sua casa pelo Natal, talvez pela última vez, todos os seus três filhos. Mas essa não será uma tarefa fácil. Gary, o primogénito, executivo, deprimido, sofre uma tremenda resistência a essa ideia por parte da sua mulher, Caroline, algumas das sequências dessa “guerrilha” são hilariantes, pois que esta não “morre de amores” pela família Lambert. Chip, o eterno favorito do pai, recentemente expulso da faculdade onde leccionava, por se ter envolvido com uma estudante, enreda-se profissionalmente num esquema fraudulento pela Internet (e há aqui uma crítica mais do que implícita ao crash do início do novo milénio das famosas “dot-com”) com o marido da última amante e vai temporariamente viver para a Lituânia. Denise, a filha mais nova, talvez a personagem mais complexa e excitante do livro, reputada chef, responsável por um dos restaurantes mais badalados de Filadélfia, envolve-se intimamente com a família do seu patrão, o que, mais tarde, acaba por lhe valer o emprego. Sendo esta a mais sensível aos problemas dos pais é aquela que entre os irmãos mais luta para ver toda a família junta no Natal, pese embora a sua precária condição emocional. Mas Denise, saberemos no final, é também a responsável por alguns equívocos nunca verdadeiramente esclarecidos no interior do seio familiar… Jonathan Frazen consegue, de uma forma aparentemente simples, apresentar-nos com mestria os traços psicológicos de cada um dos personagens deste livro e a forma como se entrelaçam é bastante cativante e consistente. Não os julga, nunca o faz, expõe-os antes sem qualquer juízo de valores, sem se preocupar com avaliações de carácter moral ou outros. Comovente o desenvolvimento da doença de Albert e todas as dificuldades pelas quais a família passa com a mesma:

The human species was given dominion over the earth and took the opportunity to exterminate other species and warm the atmosphere and generally ruin things in its own image, but it paid this price for its privileges: that the finite and specific animal body of this species contained a brain capable of conceiving the infinite and wishing to be infinite itself.

O escritor assina aqui uma inteligente crónica social que a ninguém deixa indiferente. Ou, para além do prestigiado National Book Award, não tivesse vendido já mais de três milhões de exemplares só nos Estados Unidos da América.      

domingo, 9 de outubro de 2011

Os Fittipaldis

Não deve haver nenhuma outra classe profissional em Portugal cujos membros, na sua maioria, estejam em tão grande falta de sintonia com a função que supostamente deveriam exercer do que os taxistas do nosso país. Uma corrida de táxi, hoje em dia, é, na maioria dos casos, uma desagradável odisseia. Tudo começa, no caso de zonas de grande afluência de turistas, tipo aeroportos, com a aprovação solene por parte do taxista, caso a “corrida” seja do seu agrado, isto é, uma grande distância a ser percorrida, ou incontida desaprovação, através do sobrolho carregado, brusquidão de gestos ou mesmo lamentos, tipo ladainha, caso o percurso seja curto. Já nos táxis a circular dentro das cidades essa não é uma questão importante pois que os seus condutores estão mais habituados a percorrer pequenas distâncias nos serviços que prestam. Aparte o início da corrida, há que ter nervos de aço para aguentar as velocidades que essas traiçoeiras latas metálicas com rodas, principalmente quando dirigidas pelas mãos de pessoas que nem sequer têm grande habilidade para a condução, alcançam. Dentro das cidades, principalmente naquelas que têm limitadores de velocidade que podem dar origem a multas, é vê-los a reduzir com brusquidão a marcha quando se cruzam com os sensores fotográficos e de seguida a acelerarem, até aos 100km/h ou mais, sem qualquer pudor e respeito pela vida do passageiro para quem estão a prestar um serviço (se dúvidas há é só ir à Avenida Gago Coutinho em Lisboa para o confirmar…). Pior ainda é quando o desagradado cliente lhes chama a atenção para esse facto eles, para além de, entre dentes ou alto e bom som, começarem com impropérios, ainda aceleram mais, tipo macho latino; “a mim ninguém dá palpites acerca de condução pois eu é que sei do meu trabalho!”. Para este tipo de gente muito mal formada, e psicologicamente desarranjada, o óbvio binómio serviço/cliente não está minimamente interiorizado. O desconforto ainda é maior quando estes taxistas, em acelerada marcha por estreitas ruelas, atendem chamadas telefónicas nos seus telemóveis, sem qualquer pudor ou respeito para com as outras pessoas, dentro e fora de portas. Numa outra etapa, o passageiro, para além dos insultos que tem de ouvir da boca desses Fittipaldis de meia tigela para com os outros condutores, ou transeuntes, que são sempre umas "grandes bestas", tem ainda de aturar as verborreias inconsequentes, a maioria das quais totalmente descabidas de sentido, deste tipo de pseudo-filósofos que sobre tudo opinam, quer tenham ou não reflectido um pouco sobre os mais variados assuntos que abordam. Quando termina a viagem começa um outro problema, à noite é mais frequente, que diz respeito à falta de trocos pois que segundo essas cabecinhas pensantes o cliente é que tem a obrigatoriedade de estar preparado para facilitar ao máximo a vida do prestador do serviço. Para concluir, se o passageiro não se mostrou compreensivo ao longo do percurso com os raciocínios do intrépido piloto, se lhe solicitou para que diminuísse a velocidade ou até se lhe pediu para estar calado, pois que a paciência para conceitos primários não é, às vezes, a melhor, então ainda se arrisca a ouvir algumas inconveniências pela sua falta de solidariedade para com o desgraçado que está ali só para fazer o seu trabalho e que ganha uma miséria enquanto os patrões levam tudo e eles é que arriscam a pele a fazer serviços para zonas problemáticas, etc, etc. E isto na melhor das hipótese pois outros há que reagem quer com agressões verbais quer até, nalguns casos mais extremos, físicas...  


A nítida falta de formação, e de urbanidade, destes (pouco) profissionais deveria ser exemplarmente punida, com, por exemplo, a cassação da sua carta profissional de forma sumária caso houvessem testemunhas, de modo a minimizar este tipo de comportamentos que a todos envergonha. Ou então, mais eficaz ainda, introduzir em todos os táxis sistemas de gravação de voz, cujas conversas teriam de estar disponíveis quinze dias a um mês antes de poderem ser destruídas, de maneira a se poder avaliar correctamente uma situação em caso de denúncia por parte do cliente. Para facilitar essa denúncia seria criado um livro de reclamações on-line, ou similar, por exemplo no site da ASAE, específico para este tipo de situações, onde fosse possível escrever uma queixa fundamentada, introduzindo aí a matrícula do táxi e a hora aproximada do serviço, de forma a que as autoridades facilmente fiscalizassem o sucedido e pudessem, caso se comprovassem os factos relatados, responsabilizar directamente, com pesadas coimas, os donos dessas companhias de táxis e punir sem demoras os prevaricadores. Também seria boa ideia obrigar que se instalasse um registo de velocidade nas viaturas, tipo o que os veículos pesados já possuem, de forma a que polícia pudesse ter um maior controlo sobre as infracções desse género pois que isso seguramente reduziria a sensação de mal estar do passageiro e aumentaria a segurança nas estradas portuguesas. Esta tão desprestigiada classe profissional, que se julga impune, embora as autoridades responsáveis tenham finalmente começado a olhar para este problema de uma outra forma, mas ainda com reduzida eficácia, tem de se capacitar que quando os seus membros prestam um serviço, ainda por cima dito público, então têm de se comportar de uma forma correcta pois não faz sentido nenhum que o prestador do serviço não tenha o mínimo respeito pelo seu cliente, o que, num negócio tradicional, seria ruinoso para o futuro do primeiro. É sempre perigoso generalizar mas neste caso específico penso que, infelizmente, a anormalidade é a regra e não a excepção.


fotos: migalha, lda

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Rabos de Lagartixa

  
Rabos de Lagartixa, Publicações Dom Quixote, do catalão Juan Marsé, é um livro incontornável que nos presenteia uma estrutura narrativa bem imaginada, com diálogos simples e hilariantes o que, de certa forma, suaviza toda a emotividade e tristeza implícita na história. Tudo se passa num bairro de Barcelona no pós-guerra civil espanhola. David, adolescente, aprendiz de fotógrafo e cinéfilo, e o seu amigo Paulino Bardolet, o gorducho das maracas sarapintadas, procuram lagartixas para lhes cortar o rabo na esperança de conseguirem curar as hemorróidas do segundo, pese embora o primeiro opine que só com palabartixas de Ibiza, espécie rara, o efeito será o desejado. David tem um amor especial por Faísca, o seu cãozito velho e decrépito, quase putrefacto. David, nas suas noites mal dormidas, “conversa” com o seu grande e confidente herói, um intrépido aviador da força aérea britânica, numa malfadada altura em que este, após se despenhar com o seu Spitfire, se encontra rodeado de ameaçadores soldados alemães. David, nas suas deambulações ensimesmadas, discute e recolhe preciosas informações com a presença imaginada do seu pai, há muito desaparecido vítima da perseguição da polícia política espanhola. Por vezes troca umas palavras com Juan, o seu irmão mais velho morto por uma bomba na Gran Via. David, repudia as atitudes e conversas entre a sua mãe grávida, a sensual ruiva Rosa Bartra, e o sinistro inspector Galván, da odiada Brigada Político-Social, que despreza e de quem, mais tarde, procurará vingar-se. David, invectiva o seu futuro irmão, o “girino”, que no futuro escreverá toda esta deliciosa história, enquanto este se enrosca na placenta da grande barriga de Rosa. O poster da orelha deixado para trás pelo doutor P. J. Rosón-Ansio, otorrinolaringologista cordovês, de filiação anarquista, tem uma presença forte e determinante no quarto de David e talvez possa explicar porque é que o nosso jovem protagonista ouve tantos e constantes murmúrios dentro da sua cabeça. Parece confuso? David, no início do livro, dá o mote ao leitor de como se desenrolará a bem humorada trama quando responde ao inspector, numa altura em que este o interroga sobre o paradeiro do pai:

Tivemos, mas são notícias do ano da Maria Cachucha, e não são boas – entoa David abafando um bocejo forçado e um repentino calafrio dentro do jersey de angorina, que lhe fica pequeno e deixa ver o umbigo. – Recebemos uma carta dele, e afinal não está onde julgávamos… Eu conto-lhe. Ele disse sempre que empreenderia uma longa viagem ao centro de África, desde Cartum até ao Lago Vitória passando pelos Montes Azuis, mas não, afinal à última hora mudou de plano. Está a embrenhar-se cada dia mais na selva de Mindanao, sabe onde isso fica, bwana? Nas Filipinas. E diz que teve de se disfarçar de Juramentado para prender Datu e todos os que traficam com peles de porco e dentes de elefante. E ainda há mais. Diz que é mentira que os Juramentados morram de medo se os envolvem numa pele de porco. Mentira vil.

Juan Marsé consegue conciliar o real com o imaginário e ainda arrumar com mestria um constante saltitar entre o tempo no qual a acção decorre. O narrador, o futuro irmão, ainda por nascer, conta-nos uma deliciosa história em que é muito ténue a fronteira entre o bem e o mal, o ético e o amoral. Na capa do livro aparece uma citação de António Lobo Antunes a elogiar o autor, o que, digamos, não é algo de muito comum. Vale mesmo a pena ler este premiado livro.   

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Imundície

O português é conhecido, ou pelo menos temos isso como um dado adquirido, pela sua apurada higiene pessoal e aprumo dentro de portas, pelo menos quando comparado com alguns dos seus congéneres europeus. No entanto, assim que sai à rua transforma-se numa criatura poluidora sem qualquer respeito nem por si nem pelos outros. Basta ver como as pessoas, dos mais diversos estratos sócio-económicos, e independentemente da idade, atiram para o chão, qual gigantesco caixote de lixo indiferenciado, as beatas, os bilhetes de transportes públicos já utilizados, papéis de cariz publicitária ou religiosa que algum braço estendido, de um qualquer distribuidor de ilusões de rua, acabou de lhes pôr nas mãos, lenços de papel acabados de cumprir a sua tarefa, embalagens plásticas, ou até de vidro, “cuspidas” do interior dos automóveis, em plena cidade ou nas estradas, etc., etc., já para não falar das constantes expectorações, quais projecteis sempre à espera de encontrar na sua trajectória descendente uma incauta biqueira. Não admira então que, aparentemente, ninguém repare, e se revolte, contra a sujidade que as diferentes obras no espaço público, independentemente das suas dimensões, transmitem à envolvente onde estão inseridas e que, muitas vezes, prejudicam de uma forma directa os cidadãos. Sim, não basta aos intervenientes serem pouco organizados no interior das suas empreitadas como também parece ser condição sine qua non serem completamente indiferentes, por vezes até de uma forma irresponsável, aos inevitáveis constrangimentos causados nas áreas contíguas aos seus trabalhos. Nessas construções é norma a lama que se espraia caótica por todo o lado em épocas de chuva, a desorganização dos marcos identificadores que dificultam ou impedem a circulação nos passeios, mas quase nunca nas vias de circulação pois o trânsito automóvel é soberano, as pequenas máquinas móveis e carrinhas de caixa aberta estacionadas em cima dos passeios que barram a normal circulação dos peões, a falta de uniformidade nos taipais de protecção, quando os há, que degradam a paisagem urbana, e tudo isto com o olhar complacente das autoridades públicas que deveriam impor regras e fiscalizar este tipo de constrangimentos mas que quase nada fazem.  


O maior problema é a falta de cultura de exigência que os cidadãos, no geral, e as diferentes entidades públicas que supervisionam essas obras, no particular, possuem. Em relação a estas últimas, já que a questão nos primeiros é muito complexa e demorará algumas gerações até se conseguirem obter melhorias civilizacionais visíveis, a solução deveria passar pela implementação de códigos rígidos para adjudicação de obras que obrigassem os construtores a seguir determinados tipos de procedimentos que valorizassem não só a questão funcional como também a componente estética da envolvente das mesmas. Seria muito fácil colocar nos Cadernos de Encargos meia dúzia de normas simples, padronizadas, que reflectissem estas preocupações, sujeitas a coimas pesadas em caso de incumprimento, a serem deduzidas nos pagamentos parcelares, que as cidades ficariam logo com muito melhor aspecto e os cidadãos decerto agradeceriam. Aliás, um plano de limpeza diário exterior à obra e medidas de protecção eficazes dos peões, com especial atenção para os casos de pessoas com mobilidade reduzida, deveriam estar patentes nas cláusulas dos concursos com uma forte valorização na análise das propostas.


É muito desagradável uma pessoa deparar-se com a obstrução selvática de passeios em virtude quer dos excedentes quer do armazenamento de matérias-primas das obras, tipo pedra da calçada previamente levantada, terras de consolidação dos terrenos aos montículos mais ou menos aleatórios, areia e outros similares, que ficam aí quase como que abandonados, normalmente sem qualquer protecção especial, a atrapalhar os transeuntes. Essa situação, por vezes, mantém-se até muito tempo após se “terminarem” as empreitadas, o que dá um péssimo aspecto no que diz respeito ao asseio nas cidades. Enquanto não houver uma cultura de exigência generalizada em Portugal, em que os direitos e deveres dos cidadãos se situem num mesmo patamar, então não parece que haja solução para este tipo de situações. E para um país com grande potencial turístico, que tem aí uma razoável oportunidade de crescimento económico, digamos que essa falta de esmero não augura nada de positivo para o futuro colectivo do nosso povo.


fotos: migalha, lda

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Chile, Patagónia

Em Punta Arenas, no centro da praça Muñoz Gamero, ergue-se, do alto do seu pedestal, a figura imponente do português Fernão de Magalhães. Enquanto adolescente admirava o perfil desse intrépido navegador na estátua erigida na praça do Chile, em Lisboa. Não sabia ainda que esta, doada por uma empresa chilena em 1950, é uma réplica modesta da primeira. Imaginava-o então no interior do seu estreito, navegando a todo o pano por entre vagas monumentais, a afagar acerados rochedos e a fintar tempestuosos ventos. Sentia-me invadido por um sentimento de orgulho. Sonhava que, um dia, também eu, anonimamente, viajaria por aquelas paragens.

A chegada

Santiago cresceu numa imensa planície, na zona central do país, que vai desde a cordilheira dos Andes até ao oceano Pacífico. Fundada, em 12 de Fevereiro de 1541, por Pedro de Valdivia, a quem Pizarro, depois do fracasso de Diego de Almagro, incumbiu de conquistar o Chile, é hoje uma metrópole com quase cinco milhões de habitantes, a quinta maior da América do Sul. Os gigantes cumes andinos, enfarpelados de branco, fechando a leste a linha do horizonte, são uma referência constante ao longo de toda a capital. A praça de Armas, o tradicional centro histórico, com os seus pregadores religiosos, as filarmónicas de coreto, os vendedores ambulantes e o curioso clube de xadrez local, onde os jogadores se pelejam continuamente, ao ar livre, de manhã à noite, é o verdadeiro coração da cidade. Rodeada por magníficos edifícios coloniais, como o Correo Central, o palácio La Real Audiência, onde funciona o Museo Histórico Nacional, a Municipalidad e a Catedral, é um dos locais mais atraentes de Santiago. Meio quarteirão a oeste a Real Casa Aduana alberga o incontornável Museo de Arte Pré-Colombiana, com a sua importante colecção de artesanato, que abrange a mesoamérica e toda a região andina. Caminhando em direcção a sudoeste chega-se à praça La Constitución e dá-se, de frente, com o majestoso Palacio La Moneda, finalizado no ano de 1805, da autoria do arquitecto Toesca. Sendo, desde meados do séc. XIX, a residência presidencial, foi bastante maltratado pelo golpe de estado de 11 de Setembro de 1973, que levaria o General Pinochet ao poder. As suas tropas atacaram e invadiram o edifício tendo deposto o governo de esquerda de Salvador Allende, que, segundo a versão oficial de então, se suicidou durante o confronto. Junto à praça pode-se apreciar o respeitável Hotel Carrera, um dos mais luxuosos de Santiago, que, em 1985, ficou parcialmente destruído com o rebentamento de um petardo no seu interior. Montado o engenho, por opositores ao regime, dentro de um quarto, tinha como alvo o gabinete do ditador no La Moneda. Falhou no entanto a janela de onde deveria sair e explodiu contra uma das suas paredes. O culto e afável gerente do hotel aonde me alberguei, um dos primeiros exilados dessa época de terror, tão bem retratados no filme Missing, de Costa Gravas, recordou, com amargura, esse e outros episódios do passado recente do seu país.



Seguindo pela avenida General O´Higgins, um dos herói da independência da República do Chile e seu presidente entre 1918 e 1923, e atravessando o rio Mapocho, que secciona a cidade ao meio, alcança-se o Bairro Bellavista. Aí, na praça Caupolicán, tomei o íngreme funicular, cuja paragem intermédia dá acesso ao Jardim Zoológico, para a zona mais elevada do cerro de San Cristóbal, onde se ergue uma estátua branca, com 36 metros de altura, da Virgem Maria. Pude observar, pois nesse dia a cidade não estava envolta pela habitual nuvem de poluição, a métrica ortogonal das suas ruas, os modernos, e maioritariamente feios, arranha-céus, de braço dado com os edifícios coloniais, e os Andes, sempre eles, como pano de fundo. Descendo pelo mesmo caminho fiz uma visita à La Chascona, alcunha de Matilde Urrutia, aonde funciona a Fundação Neruda. A casa, com uma decoração interior vistosa, foi construída pelo poeta para a sua amante. Três corpos independentes, demarcando claramente as zonas de lazer, de repouso e de trabalho, separados por jardins, num acidentado declive, a paredes-meias com o zoo, moldam um espaço repousante e agradável. É nesta zona residencial de casas coloridas, recheada de cafés, bares e discotecas, que a vida, à noite, se anima. Perto, o palácio de Bellas Artes, com as suas excelentes exposições temporárias, é desvio obrigatório.


Caminhando ao longo do rio pelo cuidado parque Forestal, desenhado por um paisagista francês, surge o Mercado Central. De influência britânica, com uma elegante estrutura de cobertura em ferro, manufacturada em Inglaterra, foi construído em 1872 e é um excelente local para se comprar vegetais, fruta e peixe. No outro extremo da Alameda, pelo qual também é conhecida a avenida O´Higgins, a oeste, vale a pena visitar o parque Quinta Normal com os seus diversos museus. O mais interessante é o Museo Nacional de História Natural, aonde se pode ver o corpo mumificado de uma criança sacrificada há cerca de quinhentos anos, descoberta no pico gelado de El Plomo, perto de Santiago, a cinco mil metros de altitude. Umas das curiosas atracções da cidade são os populares cafés, expressos, em que os empregados, todos mulheres, usam vestidos justos e curtíssimos que se moldam provocadoramente aos seus corpos. Através das várias agências de viagem existentes na cidade conseguem-se preços acessíveis para a ilha da Páscoa (Rapa Nui), com as centenas de místicas e colossais esculturas, as Moai, e para a ilha Robinson Crusoe, no arquipélago Juan Fernández. Foi nesta ilha deserta que, em 1704, desembarcou, do barco pirata Cinque Ports, o escocês Alexander Selkirk. Sobreviveu aí durante cinco anos antes de ser recolhido por uma outra embarcação. Daniel Dafoe, inspirando-se nessa aventura, escreveu o famoso livro Robinson Crusoe, que deu o nome à ilha. Perto de Santiago para além de Valle Nevado, uma das mais conceituadas estâncias de esqui da América, torna-se imprescindível visitar Valparaíso. 


Valparaíso, a cidade das 43 colinas, e a segunda maior do país, fica a pouco mais de uma hora, de autocarro, de Santiago. Desenvolveu-se ao longo do mar e expandiu, desordenadamente, para as encostas que o ladeiam. Do ponto de vista urbanístico a cidade possui uma organização quase medieval. As ruas, labirínticas, desenvolvem-se por entre escarpados e complexos cerros. Elas ramificam-se, entrelaçam-se, debruçam-se sobre precipícios, sobem, descem e sobem de novo, e desembocam, inesperadamente, em becos ou esconsos pátios. Sendo uma zona de frequentes sismos, cada novo abalo origina reconstruções caóticas, ou possíveis, criando renovados percursos, alterando a ordem dos antigos, num processo de contínua metamorfose. Para vencer o acentuado declive da cidade torna-se necessário recorrer aos elevadores, aos funiculares e aos milhares de escadas que aí existem. Pablo Neruda, que possuía uma casa no cerro Bellavista, escreveu, com autoridade: “Si caminamos todas las escaleras de Valparaíso habremos dado la vuelta al mundo”.


De todos os ascensores da cidade, o Polanco, construído nos finais do século passado, é, sem dúvida, o mais notável. O acesso inferior é feito através de um estreito túnel com 150 metros de comprimento e a cabina ascende cerca de 60 metros através de uma claustrofóbica galeria de pedra escura e húmida. Mas, também vale a pena explorar os ascensores Concepción, de 1883, o mais antigo de todos, e o Barón, inaugurado em 1906, que foi o primeiro a funcionar com um motor eléctrico, proveniente da Alemanha.


Para melhor se perceber a urbe é fundamental visitar os abundantes miradouros, como o Dimalow, o Gervasoni ou o Yugoslavo. Deste último, junto ao Palacio Baburizza, aonde funciona o Museo de Bellas Artes, apreciei, ao longe, o porto, o mais importante do país, e os enormes vasos de guerra aí ancorados.



Deliciei-me ainda com os amplos palácios coloniais, as cores espampanantes dos prédios, que se diz pintados com as sobras das tintas dos barcos, as cúpulas das igrejas, as praças e o inconfundível brilho dos carris dos funiculares. E a baía de Valparaíso, sempre presente, a estancar a torrente de casas, que se precipitam dos morros em sua direcção. Desci para a ampla praça Sotomayor, rodeada de belas mansões, e segui para a praça Matriz, o coração da cidade, com a sua venerada Igreja Matriz e o Mercado Central. Caía a noite em Valparaíso. Era tempo de partir e rumar em direcção a Sul.

Terra de Mapuche      
           
Próxima paragem; Puerto Montt, capital da Araucanía. Região de vetustas florestas, vulcões, lagos imensos, quedas de água e da outrora feroz resistência Mapuche, que, por diversas vezes, dizimou os espanhóis que tentavam colonizar este rico território. O poeta espanhol, Alonso de Ercilla, que os combateu durante um ano e meio, escreveu, em 1569, o poema épico La Auraucana, aonde conta os feitos destes grandes guerreiros, e particularmente dos célebres chefes Lautauro, Caupolicán e Colo Colo. Foi o exército deste último que, na batalha de Tucapel, em 1553, matou Pedro de Valdivia. Só em 1880 é que se estabeleceu a paz entre colonos e autóctones. Estes últimos, à semelhança do que aconteceu na américa do norte, foram empurrados para exíguas reservas. Puerto Montt, pitoresca cidade de chalés de montanha, com telhados de declive pronunciado e grandes varandas, que o recente crescimento imobiliário está a descaracterizar, foi fundada por colonialistas germânicos em meados do séc. XIX. O porto, Angelmó, a três quilómetros de distância, com o excelente mercado de marisco e os bazares de artesanato, é visita obrigatória. É daqui que sai o conhecido barco da Navimag, Puert Éden, com destino a Puerto Natales, que proporciona um cruzeiro de três dias pelos fantásticos fiordes da Laguna San Rafael. É também nos restaurantes perto do porto que se come o excelente Curanto, que é um guisado de marisco, peixe e carne. Próximo de importantes lagos e de alguns dos mais fascinantes vulcões da região e do arquipélago de Chiloé, Puerto Montt é um excelente ponto de partida para se explorar a Patagónia chilena.



Depois de uma breve paragem em Puerto Varas, a "cidade das rosas", com uma bem preservada arquitectura de influência alpina, na margem do lago Llanquilhe, segui em direcção ao Vicente Pérez Rosales, que foi, em 1926, a primeira área do Chile a ser decretada parque nacional. Passando pelas quedas do rio Petrohué, com as suas desassossegadas águas e escarpados morros de rocha basáltica, chega-se ao sítio de Petrohué, aonde se apanha o ferry que atravessa o lago Todos los Santos até Peulla. Pelo caminho fica a imagem mágica do alabastrino cone do vulcão Osorno, e as marcas da destruição dos seus degelos. Do passeio de barco recordo o azul profundo das águas que, perto de Peulla, se transformam em verde-esmeralda, e dos arborizados taludes que as aprisionam. Seguindo sempre para leste ao encontro dos Andes chega-se a Bariloche, a mais famosa estação de esqui da Argentina.



Mas chegar a esta latitude e não ir ao arquipélago de Chiloé é impensável. Assim, de carro, pela Pan-americana, essa mítica estrada que nasce no Alasca e termina ao sul da Isla Grande de Chiloé, e de lancha, cruzando o canal de Chacao, demorei cerca de quatro horas até Castro, que é a capital da província. Chovia e trovejava violentamente, como sempre acontece na ilha. Charles Darwin quando aí chegou, em 1834, a bordo do Beagle, escreveu, no seu Journal of Researches, que era raro encontrar uma região temperada no mundo em que chovesse tão assiduamente. A maior atracção de Castro é a igreja de S. Francisco, na praça de Armas, revestida com chapas metálicas onduladas, pintadas de salmão e violeta. No centro dessa cuidada praça ergue-se um estranho obelisco violáceo.


Visitei a Feria Artesanal, com uma enorme variedade de bonitos ponchos e camisolas de lã, e deambulei junto às lagunas, aonde pude apreciar os típicos Palafitos, que são habitações parcialmente construídas sobre a água, sustentadas por estacas de madeira. Do lado da rua estas casas têm o aspecto de todas as outras, mas, quando observadas pelas traseiras, vêem-se as delgadas varas que as suportam e aonde os residentes, na maré-alta, amarram os seus botes. A ilha Grande, com cerca de cento e oitenta quilómetros de comprido e cinquenta de largo, é moldada por suaves colinas de florestas abundantes e é uma das regiões mais pobres do país. A sua terra é preta e as tempestades ferozes. Como resultado do trabalho desenvolvido pelos Jesuítas, que para aí foram no séc. XVI, existem mais de cento e cinquenta igrejas para os cerca de cento e trinta mil habitantes. Os chilotes vivem da agricultura de subsistência e da pesca e, embora rudes, são extremamente afáveis.
           


A cidade mais austral do mundo

O voo de Puerto Montt a Punta Arenas foi deslumbrante. Do avião, de um lado, via-se a imensa cordilheira, com os seus altos picos e bojudos vulcões, coroados, aqui e ali, por halos de nuvens baças e, do outro, a costa totalmente retalhada por milhares de tortuosos fiordes. Tinha finalmente chegado à região de Magallanes e Tierra del Fuego. A indústria de lã, a exploração do petróleo e a pesca faz desta província uma das mais prósperas do Chile. É também aqui que se encontra a maior parte dos viveiros de salmão, cuja indústria é a segunda maior do mundo, logo a seguir à Noruega. Punta Arenas, fundada em 1848, tem hoje cerca de cem mil habitantes e é a capital do distrito.



Dois nomes estão intimamente ligados à história desta cidade. O do português José Nogueira, capitão da marinha mercante, que fez fortuna com a caça aos lobos marinhos, e o do espanhol José Menéndez, que fundou a poderosa Sociedad Explotadora del Tierra del Fuego, que controlava mais de um milhão de hectares na região e possuía extensas propriedades no sul da Argentina. Nogueira está ainda associado a uma história relacionada com a descoberta de uma estranha figura em madeira, por ele resgatada dum barco naufragado, que o povo adoptou como a imagem da Virgem da Terra do Fogo, cujo culto ainda hoje persiste. Queimada inadvertidamente pouco tempo depois, supõe-se que se trataria duma estátua da Rainha Vitória de Inglaterra. É no entanto a Magalhães, com toda a aura de bravura que o envolve, que é atribuído o papel de figura emblemática da cidade. Em 20 de Setembro de 1519 saiu de Espanha, de Sanlúcar de Barrameda, uma frota de cinco navios, comandada pelo capitão-general Fernão de Magalhães. Custeada por Carlos V, tinha por missão alcançar as ilhas de Maluco, no Oriente, para tentar provar que estas se encontravam dentro do meridiano que tinha sido atribuído a Castela pelo Tratado de Tordesilhas. E na sua viagem de circum-navegação que seguiu em direcção à América, em vez de tornear África, como era usual, o capitão, segundo António Pigafetta, um nobre vicentino que o acompanhou e que tão precioso relato nos legou, estava decidido a procurar um caminho que atravessasse esse continente. Quando o descobriram, e venceram, deram-lhe o nome das Onze Mil Virgens e ao novo oceano de águas calmas que se lhes deparou, mar Pacífico. Quatrocentos anos após a travessia desse estreito por Magalhães, que hoje possui o seu nome, foi descerrada uma estátua em sua homenagem, da autoria do chileno Guilherme Cordoba, na praça Muñoz Gameiro. Na base do pedestal surgem as figuras alegóricas de uma sereia, segurando nas mãos os símbolos da Espanha e do Chile, e de dois índios, um Selknam, representando a Terra do Fogo, e outro Tehuelche, representando a Patagónia. Dizem os nativos que quem beijar o pé deste índio patagão será bafejado pela sorte e, um dia, regressará. Aproveitei e segui o conselho. A praça, um dos locais mais bonitos da cidade, está cercada por imponentes mansões, como o Club de la Unión ou a antiga sede da Sociedad Explotadora, e pela Catedral. Meio bloco a norte encontra-se a faustosa Casa Braun-Menéndez, hoje transformada em Centro Cultural e Museo de História Regional.



A oeste, na avenida de Espanha, podemos apreciar a exótica moradia, com os seus torreões de pedra e ameias, de Charley Milward, o Marinheiro, primo da avó de Bruce Chatwin, cujo extraordinário diário de viagem, In Patagonia, dedica alguns capítulos à atribulada vida do seu antepassado. O cemitério, com os seus ricos mausoléus, dá uma ideia da grandeza das famílias influentes da região. Do miradouro la Cruz observei, num fim de tarde duma luminosidade estonteante, o amálgama de telhados de cores garridas e, ao longe, os descomunais navios a cruzarem o Estreito de Magalhães. De barco pode-se, na Primavera, ir até à ilha Magdalena para conhecer as colónias de pinguins no Monumento Natural Los Pinguinos. Tinha previsto seguir para sul, em direcção a Ushuaia, junto ao canal Beagle, no “mundo do fim do mundo”, já em solo argentino. Porém, alguém me falou em Calafate e no incomparável Perito Moreno, na Patagónia argentina, e me despertou a curiosidade.     

Glaciares e Guanacos

Percorrer os inóspitos caminhos de terra batida da Patagónia pode ser inesquecível, principalmente se o tempo estiver chuvoso. Como muitas vezes acontece por essas bandas, a camioneta que me transportava atolou na desolada estrada. Por companhia, para além de alguns parceiros de infortúnio e um descontraído motorista, tinha uma fantasmagórica paisagem de retorcidas árvores cinzentas, cuja flor, um amarelado e espinhoso filamento, se assemelha a uma mola. Os chilenos chamam-lhe barba do Diabo enquanto os argentinos a conhecem por lanternim chinês. Já tinha caído a noite quando finalmente chegámos a Calafate. Pequena vila, constituída por meia dúzia de ruas dispostas ortogonalmente, feia e pouco hospitaleira. É, no entanto, um local habitual de pernoita para quem quer conhecer o Parque Nacional Los Glaciares, património mundial da UNESCO desde 1981.


O glaciar Moreno, o mais espantoso de todos, um dos poucos do mundo que se deslocam, que deslizam sobre a sua comprimida base de gelo, tem cerca de trinta e cinco quilómetros de comprimento por quatro de frente e sessenta metros de altura. Devido a excepcionais condições geográficas podemos aproximar-nos dele até uma distância de duzentos metros, quer de barco quer por terra, o que proporciona um espectáculo único. Progredindo ao longo de um vale da cadeia montanhosa dos Andes penetra no canal de Los Témpanos e avança de encontro à terra firme da província de Magallanes, fechando-o. Esta invasão vai interromper a passagem de água do Brazo Rico para o lago Argentino, o que origina, quando o gelo já não aguenta a pressão das águas, que chegam a subir vinte e cinco metros em relação ao seu nível normal, um fantástico rebentamento deste dique natural. A água começa, lentamente, a perfurar a parte inferior do glaciar abrindo um túnel que vai alargando até que, subitamente, toda a estrutura superior colapsa com um fragor tremendo, provocando uma formidável onda de gelo e água. Este fenómeno ocorre normalmente de quatro em quatro anos, embora o último rompimento se tenha dado em Fevereiro de 1988. Em qualquer altura do ano a quietude do lugar, perturbada apenas por ocasionais derrocadas das paredes do glaciar, associada às escultóricas figuras dos blocos de gelo, cujas enormes gretas permitem observar os densos e azuláceos cristais no seu interior, faz deste local um dos mais fascinantes do planeta.


Mas não se pode ir ver o los Glaciares sem se passar igualmente pelo parque Torres del Paine, já no Chile. Para isso é obrigatório cruzar novamente a fronteira, em direcção a sul, e fazer uma escala em Puerto Natales. Cidade simpática, com a sua encantadora praça de Armas, o pequeno porto e os belos cisnes de pescoço negro, a nadarem descontraidamente no Seno Ultima Esperança.


No caminho para o Paine fiz um desvio que me levou à famosa Cueva del Milodón. A gruta foi descoberta em 1890, por Hermann Eberhard, que achou aí um bocado de pele dum animal desconhecido, o Milodón, extinto há mais de 10 mil anos. Foi mais tarde metodicamente explorada pelo arqueólogo Erland Nordenskjold, que pôs a nu uma série de vestígios desse mamífero, que teria cerca de 3m de altura. Entre estes dois acontecimentos surgiram várias lendas que deram origem a peripécias rocambolescas, chegando o jornal Daily Express a financiar uma expedição para o capturar, pois que se suponha ainda vivo.



Com cerca de duzentos e quarenta mil hectares, o Parque Nacional Torres del Paine, que deve o seu nome a pontiagudas formações graníticas, de mais de dois mil e oitocentos metros de altura, com os seus bem organizados trilhos, é um local privilegiado para fazer escalada e trekking. Os circuitos recomendados pela CONAF, Corporación Nacional Forestal, entidade que superintende o parque, podem demorar de dois a sete dias a serem percorridos. Como os percursos não são totalmente isentos de perigo, e já têm acontecido acidentes mortais, está montada uma rede de segurança que permite, quase diariamente, controlar todos os caminhantes. Existem ainda refúgios de montanha e pequenos albergues, que oferecem confortável abrigo em condições climatéricas adversas. As magníficas paisagens com os seus lagos, lagunas, quedas de água e glaciares, e a abundante vida animal, cuja principal atracção são os cerca de três milhares de irascíveis Guanacos, fazem deste parque um dos mais procurados da América do Sul.
             

fotos: migalha, lda

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Oía e Firá, Santorini

Entre meados do séc. XV e finais do seguinte, antes de Cristo, não há ainda consenso em relação à data correcta, uma tremenda erupção vulcânica pulverizou a cúpula do vulcão da ilha de Thera, como era então conhecida Santorini, pertencente a um arquipélago vulcânico situado no mar Egeu a cerca de 200km de distância de Atenas. Essa brutal explosão dos gases que se formaram por debaixo da lava originou uma profunda cratera que foi prontamente invadida pela água do mar alterando assim toda a configuração da ilha, que hoje em dia tem a forma de uma ferradura. Pensa-se que essa derrocada de milhares de toneladas de rocha e lava teve como consequência a formação de um tsunami gigantesco que contribuiu para a extinção da civilização Minóica em Creta. 


A melhor maneira, a mais espectacular, de se chegar a essa ilha é, sem dúvida, de barco. A primeira impressão que temos quando nos aproximamos do porto, Athinios, ao depararmos com aquelas enormes e íngremes paredes com várias centenas de metros de altura esculpidas na vertical, coroadas por pequenas construções geométricas brancas, algumas das quais parecem vacilar irremediavelmente para o abismo, que mergulham numa miríade de tons rosas, amarelos, ocres e pretos na água densa e azul do mar Egeu, é de assombro.


No extremo norte da ilha deparamos com Oía, uma pequena vila construída no topo da falésia da cratera, Caldera, cujas habitações, em alguns casos, são esculpidas no interior da rocha. As ruas são muito estreitas, quase labirínticas, repletas de escadas, e desembocam em solarengos terraços brancos que por aí proliferam. Como antiga colónia de pescadores possui um pequeno porto, Ammoudi, onde, para quem tem pernas para descer, e depois subir, trezentos degraus bastante altos, se pode dar um mergulho em águas límpidas e calmas e aproveitar alguns dos bares que aí existem. 



Um dos encantos de Oía são as muitas igrejas brancas de cúpulas azuis que por aí se dissimulam, encurraladas no meio da urbe de casas de cores tipicamente mediterrânicas. Mas Oía é famosa, para além da sua culinária, pelo pôr-do-sol que atrai milhares de turistas ao fim da tarde para presenciarem o espectáculo, com o inevitável congestionamento de toda a zona.


Bem perto dali, a cidade de Firá, a zona comercial da ilha, o que no entanto não lhe diminui em nada o encanto, parece que se pendura e precipita vertiginosamente pela falésia abaixo. Amplas e apertadíssimas ruas rasgadas na rocha basáltica, entrecruzando-se em ângulos impossíveis, pejadas de lojas, bares, restaurantes, espaçosas esplanadas e muita animação. Possui ainda um pequeno mas interessante museu de arqueologia. 


Curioso, e eficaz, um dos meios de transporte da cidade, que aliás replica o modelo existente em Athinios para quem chega a Santorini e não quer pagar uma dispendiosa corrida de táxi, consiste na utilização de mulas e de burros para esse efeito. Estes são uma alternativa mais económica do que o teleférico que liga Firá ao seu porto, Skála, embora a íngreme descida com seiscentos degraus não seja tarefa fácil nem para os pobres animais de carga.     


É de Skála que partem muitas das excursões por barco que nos levam às ilhotas de Néa Kaméni, onde se localiza o centro do vulcão ainda activo, como aliás atesta o constante fumo sulfuroso que se liberta do subsolo, e de Paleá Kaméni. Antes de se chegar a esta última ilha é "obrigatório" saltar do barco para a água e nadar até uma zona de fontes quentes termais. Estes passeios marítimos são imprescindíveis.



Santorini está ainda associada à famosa Atlântida de Platão pois é um dos locais mais frequentemente apontados para a localização desse romântico mito. Mas Oía e Firá são reais e um dos legados que o povo grego nos presenteia, duas maravilhas construídas pelo ser humano que urge preservar, pese embora a forte instabilidade geológica, que se manifesta através de terramotos e de erupções vulcânicas, tenha provocado inúmeras catástrofes ao longo dos séculos. Mas ao que os gregos sempre responderam de forma corajosa e perseverante.



fotos: migalha, lda