segunda-feira, 28 de março de 2011

Seinäjoki e Alvar Aalto

A uns 350 quilómetros a nordeste de Helsínquia podemos encontrar a pequena cidade de Seinäjoki, uma pérola da arquitectura moderna, ou não tivesse o seu centro sido desenhado pelo grande mestre finlandês Alvar Aalto. Todo o processo começou com o concurso para uma igreja, que ele mais tarde denominou Lakeuden Risti, “A Cruz da Planície”, que ganhou no início dos anos cinquenta do século passado e cuja construção se concluiu no final dessa década. Convém referir que Seinäjoki é um centro religioso luterano importante com grande influência na zona central e no norte da Finlândia, pelo que se entende a importância estratégica desta muito depurada igreja cujas enormes portas laterais podem deslizar sobre calhas abrindo e prolongando o espaço interior para um largo relvado que tem capacidade para acolher cerca de 15.000 pessoas aquando da celebração de serviços religiosos.



Numa altura em que a igreja já estava a ser construída, o arquitecto/designer voltou a ganhar um outro concurso para o desenho do novo centro de Seinäjoki, em cujo programa constava uma câmara municipal, uma biblioteca, um teatro e vários edifícios administrativos. No projecto que apresentou Aalto pensou em três grandes áreas quadradas interligadas entre si, duas das quais pedonais. A primeira em redor da sua igreja, a segunda incorporava os vários edifícios referidos anteriormente e a terceira foi concebida como uma zona, meio escondida das outras duas, para circulação e estacionamento de automóveis. É um prazer deambular por entre esses alargados espaços, em que a sensação que desde logo nos domina, para além da qualidade estética do bem preservado conjunto arquitectónico, é o equilíbrio entre os espaços pedonais e os edifícios que os envolvem. Atente-se no cuidado que o arquitecto colocou em todos os pormenores, desde os equipamentos urbanos, especialmente nos candeeiros públicos, até aos materiais utilizados nos edifícios e nos pisos exteriores. 



Após uma demorada visita à elegante e muito tranquila igreja vale a pena pagar um euro e subir no elevador manhoso até ao topo da torre da mesma. De lá de cima pode-se apreciar a suavidade da cidade, a sua lógica relativa ao ordenamento dos espaços habitáveis, as suas cores e, como em qualquer outra área habitada naquele magnífico país escandinavo, grande ou pequena, muitos e cuidados espaços verdes, numa simbiose perfeita entre produção humana e paisagem natural. Ao fundo, algumas envergonhadas montanhas a dar um pouco de relevo à planície. Depois, não parta sem antes ter entrado na biblioteca para apreciar o mobiliário em madeira e aquele especial tecto ondulado tão característico das obras de Aalto.


Há no entanto uma outra particularidade, aparentemente invulgar nesta zona do globo, que é a apetência das suas gentes pelo tango, sim, tango finlandês, algo diferente do argentino mas dançado com a mesma garra, ou pelo menos, com o mesmo tipo de sentimento, embora neste caso com alma nórdica. No verão a cidade é palco de vários importantes festivais de música, entre os quais se destaca, como não podia deixar de ser naquela que é denominada capital finlandesa do tango, o Tangomarkkinat.


fotos: migalha, lda

quinta-feira, 24 de março de 2011

O Vale da Paixão


Lídia Jorge é uma grande contadora de histórias, como aliás atestam todos os prémios que tem recebido ao longo dos anos. A sua escrita é fluida e os seus contos lêem-se com prazer, muito prazer. O Vale da Paixão, 1998, tem no entanto uma característica singular no universo literário desta escritora; o seu início é absolutamente avassalador. Tem de se ler duas a três vezes, pelo menos, as primeiras páginas do livro para podermos começar a interiorizar a mensagem. Atente-se, parafraseando Eduardo Prado Coelho na contra capa do romance, na “espantosa força do seu arranque”:

“Como na noite em que Walter Dias visitou a filha, de novo os seus passos se detêm no patamar, descalça-se rente à parede com a agilidade de uma sombra, prepara-se para subir a escada, e eu não posso dissuadi-lo nem detê-lo, pela simples razão de que desejo que atinja rapidamente o último degrau, abra a porta sem bater e entre pelo limiar apertado, sem dizer uma palavra. E foi assim que aconteceu. Ainda o tempo de reconstituir esses gestos não tinha decorrido, e ele já se encontrava a meio do soalho segurando os sapatos com uma das mãos. Chovia nessa noite distante de Inverno sobre a planície de areia, e o ruído da água nas telhas protegia-nos dos outros e do mundo como uma cortina cerrada que nenhuma força humana poderia rasgar. De outro modo, Walter não teria subido nem teria entrado no interior do quarto.”  

A história centra-se na intricada trama, pelo menos na forma como a autora a narra, em redor dos elementos da família Dias, num cenário rural em meados do século passado e, mais tarde, do fenómeno da emigração e suas consequências para o clã. Mas tudo começa na grave ofensa, “abalroamento”, praticada pelo filho mais novo de Francisco Dias que influenciará para sempre a vida de todos. Aquele, que não teve coragem, ou vontade, para assumir as suas responsabilidades, parte, enquanto militar, para Goa e a família, que acaba por compensar o erro praticado, a pouco e pouco, retoma a normalidade, a azáfama diária, até que, contrariamente ao sentido apelo do pai para que ele não volte mais, eis que o “trotamundos” reaparece e com ele a inquietude à casa de Valmares:

“Ouço o rodado do táxi e o próprio táxi. Walter chegando ao pátio e os animais, irrequietos, a escarvar perto do trem, os animais em sobressalto, parando. O deslizar suave do táxi sobre a lama, depois sobre a pedra, o rodado brando dos pneus chegando. Em sessenta e três, o táxi era ainda um transporte raro. Dentro do táxi escuro vinha um homem de gabardina clara com cigarro aceso. Primeiro saiu a aba da gabardina, em seguida a mão com o cigarro, a seguir saiu a cabeleira curta, o corpo apareceu por inteiro, mas só depois, quando nos olhou, sobre a calçada, surgiu o soldado Walter.”

Não há dúvida que neste livro as imagens da escritora têm um vigor que nos deixam sempre na expectativa naquilo que virá depois, prendendo-nos página após página até ao epílogo final. Para além disso, a maneira como Lídia Jorge nos impõe a história e como retrata psicologicamente os personagens, com os seus defeitos, os seus podres, e todas as suas virtudes, cria em nós uma simbiose com aquele mundo imaginário que até poderia ser na realidade o nosso. Comovente o derradeiro encontro, em Buenos Aires, entre Walter e a filha. E mais não digo, ou melhor, digo, leiam o livro…

sexta-feira, 11 de março de 2011

Meridiano de Sangue


Cormac McCarthy é um dos meus escritores contemporâneos favoritos. Embora não seja um autor de leitura fácil, as suas exaustivas e barrocas descrições das paisagens envolventes chegam a ser exasperantes, a densidade e construção dos enredos são normalmente geniais. Meridiano de Sangue, Blood Meridian or the Evening Redness in the West, de 1985, cuja temática é de uma crueldade quase insuportável, um livro em que a barbárie é omnipresente, o “apocalipse por excelência”, segundo as palavras de Harold Bloom, talvez seja a sua mais importante obra até ao momento. E digo talvez pois a qualidade geral das suas narrativas é de tal modo elevada que me é difícil enquadrá-las numa escala de valores. Este inquietante livro que se inspira em acontecimentos históricos, decorridos em meados do séc. XIX, na fronteira entre o México e os EUA, descreve a violência perpetrada por um bando de facínoras, liderado pelo odioso capitão John Joel Glanton, contratado pelos mexicanos para matar e escalpelar índios Apache, e desenvolve-se à volta das suas duas principais personagens; o “rapaz”, baleado junto ao coração logo na segunda página, e o juiz Holden, que nos promete, e nunca saberemos se com razão, que nunca morrerá, sádico, violador de crianças, assassino, temido mas também endeusado pelos seus pares:

“O juiz olhou à sua volta. Sentado diante do fogo estava nu, à parte as ceroulas, e tinha as mãos apoiadas nos joelhos, de palmas para baixo. Os olhos eram frestas vazias. Entre os membros do bando, ninguém fazia a mais pequena ideia do que esta postura significava, e todavia, ali sentado, ele assemelhava-se tanto a um ícone que eles começaram a mostrar-se cautelosos e falavam entre si com ar circunspecto, como se não quisessem despertar uma criatura que fosse preferível deixar dormir.”  

O bando circula constantemente por essa fronteira texana, ao longo de agrestes regiões, à caça das suas futuras vítimas e, por onde passa, deixa invariavelmente uma indelével mancha de sangue e brutalidade. Mais tarde, e de acordo com a história real, grande parte do grupo, incluindo Glanton, será por sua vez dizimado num impiedoso acto de vingança dos índios Yuma, também aqui descrito, ou romanceado, por McCarthy. Desde já alerto que esta obra não é para pessoas impressionáveis pois algumas descrições dos massacres, muitos e variados, são bastante arrepiantes:

“… e um dos delawares emergiu do fumo com um bebé despido a baloiçar de cada punho e acocorou-se junto a um anel de pedras que delimitava um monturo e ergueu-os pelos calcanhares, primeiro um, depois o outro, e bateu-lhes com a cabeça contra as pedras, de modo que os miolos jorraram pela fontanela num vómito sanguinolento,…”

Em toda a narrativa os diálogos, rudes, são frugais e parcos e o autor dá-nos a conhecer o enredo através da constante acção, que vai muito para além da simples violência, do movimento e das pausas dos seus personagens, num bem demarcado jogo do claro e escuro, luz e trevas, que cativam o leitor da primeira à última página. Os monólogos do juiz, a ler com redobrada atenção, são absolutamente brilhantes. O diálogo final entre o “rapaz”, agora já homem, e o juiz, sempre sem idade aparente, quando se encontram casualmente muitos anos depois num bar em que se desenrola um bailarico é muito forte e premonitório do terrível desenlace final. O epílogo é enigmático e deixa uma qualquer porta aberta, para o quê não se sabe bem.