quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Rabos de Lagartixa

  
Rabos de Lagartixa, Publicações Dom Quixote, do catalão Juan Marsé, é um livro incontornável que nos presenteia uma estrutura narrativa bem imaginada, com diálogos simples e hilariantes o que, de certa forma, suaviza toda a emotividade e tristeza implícita na história. Tudo se passa num bairro de Barcelona no pós-guerra civil espanhola. David, adolescente, aprendiz de fotógrafo e cinéfilo, e o seu amigo Paulino Bardolet, o gorducho das maracas sarapintadas, procuram lagartixas para lhes cortar o rabo na esperança de conseguirem curar as hemorróidas do segundo, pese embora o primeiro opine que só com palabartixas de Ibiza, espécie rara, o efeito será o desejado. David tem um amor especial por Faísca, o seu cãozito velho e decrépito, quase putrefacto. David, nas suas noites mal dormidas, “conversa” com o seu grande e confidente herói, um intrépido aviador da força aérea britânica, numa malfadada altura em que este, após se despenhar com o seu Spitfire, se encontra rodeado de ameaçadores soldados alemães. David, nas suas deambulações ensimesmadas, discute e recolhe preciosas informações com a presença imaginada do seu pai, há muito desaparecido vítima da perseguição da polícia política espanhola. Por vezes troca umas palavras com Juan, o seu irmão mais velho morto por uma bomba na Gran Via. David, repudia as atitudes e conversas entre a sua mãe grávida, a sensual ruiva Rosa Bartra, e o sinistro inspector Galván, da odiada Brigada Político-Social, que despreza e de quem, mais tarde, procurará vingar-se. David, invectiva o seu futuro irmão, o “girino”, que no futuro escreverá toda esta deliciosa história, enquanto este se enrosca na placenta da grande barriga de Rosa. O poster da orelha deixado para trás pelo doutor P. J. Rosón-Ansio, otorrinolaringologista cordovês, de filiação anarquista, tem uma presença forte e determinante no quarto de David e talvez possa explicar porque é que o nosso jovem protagonista ouve tantos e constantes murmúrios dentro da sua cabeça. Parece confuso? David, no início do livro, dá o mote ao leitor de como se desenrolará a bem humorada trama quando responde ao inspector, numa altura em que este o interroga sobre o paradeiro do pai:

Tivemos, mas são notícias do ano da Maria Cachucha, e não são boas – entoa David abafando um bocejo forçado e um repentino calafrio dentro do jersey de angorina, que lhe fica pequeno e deixa ver o umbigo. – Recebemos uma carta dele, e afinal não está onde julgávamos… Eu conto-lhe. Ele disse sempre que empreenderia uma longa viagem ao centro de África, desde Cartum até ao Lago Vitória passando pelos Montes Azuis, mas não, afinal à última hora mudou de plano. Está a embrenhar-se cada dia mais na selva de Mindanao, sabe onde isso fica, bwana? Nas Filipinas. E diz que teve de se disfarçar de Juramentado para prender Datu e todos os que traficam com peles de porco e dentes de elefante. E ainda há mais. Diz que é mentira que os Juramentados morram de medo se os envolvem numa pele de porco. Mentira vil.

Juan Marsé consegue conciliar o real com o imaginário e ainda arrumar com mestria um constante saltitar entre o tempo no qual a acção decorre. O narrador, o futuro irmão, ainda por nascer, conta-nos uma deliciosa história em que é muito ténue a fronteira entre o bem e o mal, o ético e o amoral. Na capa do livro aparece uma citação de António Lobo Antunes a elogiar o autor, o que, digamos, não é algo de muito comum. Vale mesmo a pena ler este premiado livro.   

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