quinta-feira, 24 de março de 2011

O Vale da Paixão


Lídia Jorge é uma grande contadora de histórias, como aliás atestam todos os prémios que tem recebido ao longo dos anos. A sua escrita é fluida e os seus contos lêem-se com prazer, muito prazer. O Vale da Paixão, 1998, tem no entanto uma característica singular no universo literário desta escritora; o seu início é absolutamente avassalador. Tem de se ler duas a três vezes, pelo menos, as primeiras páginas do livro para podermos começar a interiorizar a mensagem. Atente-se, parafraseando Eduardo Prado Coelho na contra capa do romance, na “espantosa força do seu arranque”:

“Como na noite em que Walter Dias visitou a filha, de novo os seus passos se detêm no patamar, descalça-se rente à parede com a agilidade de uma sombra, prepara-se para subir a escada, e eu não posso dissuadi-lo nem detê-lo, pela simples razão de que desejo que atinja rapidamente o último degrau, abra a porta sem bater e entre pelo limiar apertado, sem dizer uma palavra. E foi assim que aconteceu. Ainda o tempo de reconstituir esses gestos não tinha decorrido, e ele já se encontrava a meio do soalho segurando os sapatos com uma das mãos. Chovia nessa noite distante de Inverno sobre a planície de areia, e o ruído da água nas telhas protegia-nos dos outros e do mundo como uma cortina cerrada que nenhuma força humana poderia rasgar. De outro modo, Walter não teria subido nem teria entrado no interior do quarto.”  

A história centra-se na intricada trama, pelo menos na forma como a autora a narra, em redor dos elementos da família Dias, num cenário rural em meados do século passado e, mais tarde, do fenómeno da emigração e suas consequências para o clã. Mas tudo começa na grave ofensa, “abalroamento”, praticada pelo filho mais novo de Francisco Dias que influenciará para sempre a vida de todos. Aquele, que não teve coragem, ou vontade, para assumir as suas responsabilidades, parte, enquanto militar, para Goa e a família, que acaba por compensar o erro praticado, a pouco e pouco, retoma a normalidade, a azáfama diária, até que, contrariamente ao sentido apelo do pai para que ele não volte mais, eis que o “trotamundos” reaparece e com ele a inquietude à casa de Valmares:

“Ouço o rodado do táxi e o próprio táxi. Walter chegando ao pátio e os animais, irrequietos, a escarvar perto do trem, os animais em sobressalto, parando. O deslizar suave do táxi sobre a lama, depois sobre a pedra, o rodado brando dos pneus chegando. Em sessenta e três, o táxi era ainda um transporte raro. Dentro do táxi escuro vinha um homem de gabardina clara com cigarro aceso. Primeiro saiu a aba da gabardina, em seguida a mão com o cigarro, a seguir saiu a cabeleira curta, o corpo apareceu por inteiro, mas só depois, quando nos olhou, sobre a calçada, surgiu o soldado Walter.”

Não há dúvida que neste livro as imagens da escritora têm um vigor que nos deixam sempre na expectativa naquilo que virá depois, prendendo-nos página após página até ao epílogo final. Para além disso, a maneira como Lídia Jorge nos impõe a história e como retrata psicologicamente os personagens, com os seus defeitos, os seus podres, e todas as suas virtudes, cria em nós uma simbiose com aquele mundo imaginário que até poderia ser na realidade o nosso. Comovente o derradeiro encontro, em Buenos Aires, entre Walter e a filha. E mais não digo, ou melhor, digo, leiam o livro…

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